sábado, 4 de dezembro de 2010
#5
Você está descalço, caminhando por um extenso pasto vazio. A relva úmida e baixa estende-se pela campina como um tapete verde-vivo, lambendo-lhe a sola dos pés e alojando-se entre seus dedos. Cócegas. Você está sorrindo, mas não sabe desde quando.
As vestes de algodão cru que você traz no corpo dançam ao ritmo do vento. Confortáveis como nenhuma outra roupa que usara. Você enche seus pulmões com o ar puro do campo e essa atitude nunca pareceu-lhe tão revigorante. Seus pulmões estão livres dos edemas causados pelos cigarros.
Cigarros.
Um carro buzina ao longe. Seus olhos reviram sob as pálpebras.
O céu crepuscular divide-se em infinitos tons de amarelo e vermelho, adornando as nuvens com contornos dourados. Os raios-de-sol nunca estiveram tão visíveis. Você observa a paisagem pelo o que você julga ser tempo o suficiente, absorvendo todo seu esplendor.
Logo à frente, o pasto dá lugar a uma floresta de pinheiros. Você pára ao sopé da primeira fileira de árvores e olha para os pés descalços. A trilha de terra branca está revestida de pinhas e sementes pontiagudas. Você se pergunta se sentirá alguma dor ao pisar.
Dor.
O cheiro do corpo dela em decomposição. Suas pálpebras oscilam.
Você está caminhando pela trilha. Sementes, pinhas e cascalho parecem ser feitos de isopor. O farfalhar das folhas dos pinheiros soa como música para os seus ouvidos. Nesse mundo não há dor, não há preocupações. Nesse mundo tudo é simples e naturalmente bonito. Uma pinha cai do alto de uma das árvores com um baque surdo na terra fofa.
Batidas na porta.
Uma voz grave diz que vai entrar. Suas pálpebras entreabrem-se por alguns segundos.
No final da trilha você a encontra pendurada numa cruz, com os mesmos cortes. Alguns pássaros beliscam os ferimentos no corpo dela com o bico, tirando pequenos talhos de carne. Ela, indiferente à dor, olha pra você com grandes olhos inquisidores. Ela pergunta o porquê. Você diz que não sabe.
A porta vem ao chão com um estrondo. Você ainda sente a seringa na mão. Um borrão cinza salta uma massa vermelha no chão e vem em sua direção. Você olha para o homem e ele está pálido. Horrorizado, ele pergunta o porquê, em nome de Deus, você fez aquilo. Você derruba a seringa e diz que não sabe.
sexta-feira, 18 de junho de 2010
#4
Está anoitecendo. Você está sentado no banco da praça e está frio. O vento afaga as folhas das árvores com seus dedos finos e invisíveis fazendo-as suspirar num chiado rítmico, quase musical. Você fecha os olhos e inspira fundo. O ar gelado entra ardendo pelas suas narinas.
Trabalho, estudos, estresse. Ao final do dia, nada que faça valer a pena o esforço. Então você usa memórias felizes de um passado distante como escapismo. Há alguns invernos atrás, viver era usufruir das novidades sem preocupações ou responsabilidades.
Viver hoje é não viver.
É trabalhar mais de oito horas por dia e sacrificar suas horas vagas para estudar as matérias dadas na faculdade. É ter que conviver com pessoas que você não suporta e ver os únicos amigos de verdade raríssimas vezes ao ano. É estar limitado a não fazer nada do que gostaria.
Viver hoje é estar morto por dentro.
Você abre os olhos. O céu já está quase completamente escuro. Você varre seus problemas da cabeça e joga-os nas costas, junto com a mochila. É hora de ir para casa. Ou para o lugar que assim você o chama.
Um gato morto na sarjeta, um mendigo bêbado cortejando uma prostituta e o cheiro rançoso das lanchonetes de esquina são as únicas coisas que ornamentam a noite. Não há estrelas no céu. Há muito a poluição as havia engolido. Você se pergunta se o mundo sempre fora assim ou os olhos veem o que querem ver. Provavelmente os dois.
Você pensa no jovem que sonhava com a maioridade, em sair de casa com 18 anos e viver sem a aporrinhação dos pais. Você pensa no jovem que sonhava em morar com os amigos e fazer da vida uma eterna festa. Você passa em frente à vitrine espelhada da loja de calçados na avenida e vê o que sobrou desse jovem garoto: um homem sem vontade, consumido pelo estresse, o tédio, e morto por dentro. Morto por dentro.
"Posso ajudar?"
Você diz ao vendedor que não. Ninguém pode ajudar. Você continua o caminho para casa. Você sabe que está morto desde o dia em que nasceu e fora predestinado a ser o homem que é. A vida é uma loteria. Não tem nada a ver com dinheiro, você pensa, mas é o que é. Ser o espermatozóide certo no óvulo certo. Estar no lugar certo na hora certa. Conhecer as pessoas certas nos momentos certos. Cada evento desses pode desencadear sentimentos diferentes, perspectivas diferentes, ideias diferentes. Pode lhe dar um motivo pelo qual continuar vivendo. Um motivo para ser feliz.
Algumas pessoas têm essa sorte, mas não você. Você não tem pelo o que viver porque sua visão de mundo tornou-se imutável. Aos seus olhos o mundo é o lixo que é e não há conserto. Você pensa que o melhor seria estar morto. O melhor seria dormir e não acordar. Mas...
Na sua casa você deita a cabeça sobre o travesseiro. Coloca o celular para despertar às 5:00. Boceja.
Não importa quantas vezes você pense nessas coisas, nunca vai chegar a uma conclusão. Você continuará vivendo em função do amanhã. Não por dar valor à vida ou por ter esperanças de que ela possa melhorar;
Mas por não ter escolha.
***
"Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro,
- Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;"
- trecho de Por Que Mentias, de Álvaro de Azevedo
Do deserto, o poento caminheiro,
- Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;"
- trecho de Por Que Mentias, de Álvaro de Azevedo
domingo, 2 de maio de 2010
#3
Você está no balcão da sorveteria e Jéssica está te esperando numa mesa. Ela pede uma cesta de morango com cobertura quente de chocolate e você pede uma mista de chocolate e creme com calda de chocolate e castanha pra você. Enquanto você espera o pedido, sente alguém cutucar-lhe as costas. Você se vira e Jéssica está com um canudo em cada narina e os olhos estrábicos. Você ri e dá-lhe um soco de leve no ombro.
Se você nunca esteve triste, como pode saber o que é felicidade?
Você pega sua cesta e Jéssica a dela e vão para a mesa que ela tinha reservado. Jéssica dá a primeira colherada no sorvete e fala que morango é o melhor sabor que existe. Você contradiz esse comentário com o argumento de que tudo o que é feito de morango é muito enjoativo.
Se você nunca provou o amargo, como poder saber o que é doce?
Ela encara isso como um insulto e insiste em enfiar-lhe uma colherada do sorvete goela abaixo. Você se esquiva, ela suja seu rosto e você acaba cedendo. Você ri e faz o mesmo com ela, porque sabe que ela odeia castanha. Ela xinga e sorri enquanto limpa o rosto com o guardanapo de papel. Você nunca viu um sorriso tão lindo.
Se você nunca odiou, como pode saber o que é amar?
Você e Jéssica saem da sorveteria e alguém passa correndo por você, então tudo acontece muito rápido: você ouve uma sirene, um estouro e sente uma pancada na cabeça. Gritos. Você sente algo quente escorrendo pelo rosto e o olho esquerdo é acortinado por um líquido rubro e viscoso. Você vê o mundo girar e num segundo você está em pé, no outro você está olhando para o céu alaranjado. Você está com frio.
Se você nunca sentiu frio, como pode saber o que é calor?
Você está com sua mãe na cozinha e ela deixa você lamber a colher com cobertura de bolo e seu pai segura o banco da bicicleta enquanto você pedala. Você vai para a escola com sua lancheira azul do Pernalonga e está jogando futebol com os garotos da classe. A Ana está segurando sua mão no playground da escola e você diz pra sua mãe que vocês estão namorando. Você está com o nariz sangrando e acerta o olho do Marquinhos com um soco. Você está com a Paula embaixo da árvore do pátio da escola e vocês se beijam. Você está aprendendo equação do segundo grau e você é foda. Você está no enterro do seu pai e então está no beco atrás da padaria fumando maconha.
Se você nunca fez algo errado, como pode saber o que é certo?
Sentado no fundo da classe, você não fala com ninguém. Uma garota senta do seu lado e diz se chamar Jéssica e você dá de ombros. Você está no cinema com a Jéssica e os amigos dela e eles são legais. Jéssica está chorando e você diz algo que a faz sorrir. Você e Jéssica estão andando na orla da lagoa do parque e está frio. Ela te abraça e você sente o coração dela batendo próximo ao seu. Seus lábios se encontram e nada mais importa. Nada mais importa quando você sai da sorveteria e o policial pede para chamar uma ambulância porque alguém foi acertado por uma bala perdida. Você apenas olha para Jéssica e descobre que valeu a pena estar ali apenas para ver aquele sorriso, sentir aquele abraço e dar aquele beijo.
Você está com frio. Você está com sono. Você fecha os olhos.
Se você nunca morreu, como pode saber que está vivo?
quarta-feira, 28 de abril de 2010
#2
Você está sobre o púlpito e nas suas mãos está a Palavra. O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Em verdes pastagens lhe faz repousar; para fontes tranquilas Ele te conduz e restaura as suas forças. Você encara os fieis a sua frente e fala isso em voz alta. Bendito seja o Senhor, Aleluia!
Isabel não veio para o culto novamente. Dor-de-cabeça.
Ah, o casamento. A união espiritual entre o homem e a mulher diante o Deus-Pai. União essa que vai muito além da vulgar união carnal banalizada pela sociedade contemporânea. União carnal. Sexo. Você se pergunta há quanto tempo não se une de tal maneira com Isabel. Filhos crescidos, casa vazia, mas Isabel vive com dor-de-cabeça e isso contribui para que tal ato não seja consumado. Não faz mal. Isso não lhe faz falta. O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Ele te guia por bons caminhos por causa do Seu nome.
A igreja ressoa os murmúrios dos fieis fervorosos. Mãos voltadas aos céus, alguns pares de joelhos beijando o mármore frio dessa noite de sábado. O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Por mais que caminhe pelo Vale da Morte, nenhum mal temerá, pois Ele está contigo; Teu bastão e Teu cajado lhe deixam tranquilo.
O Senhor estava ali para purificar cada alma pecadora. Cada alma pecadora menos Isabel, porque Isabel não estava presente. Não ia ao culto havia semanas. Meses. Sempre a mesma desculpa, tanto para o culto quanto para o sexo. Você pede para o Senhor dar um jeito em Isabel. Maldita Isabel.
Mirando o teto com a Palavra – folhas amarelas de uma versão antiga, presente do seu pai – você grita que alguém será purificado e agraciado pelo Espírito Santo essa noite. Esse alguém não será Isabel, porque Isabel está com uma porra de uma dor-de-cabeça e não quer vir na porra da igreja e nem dar uma porra de uma foda com você.
Nisso, uma mulher que estava sentada na terceira fileira da nave esquerda da igreja caminha na sua direção com uma menina no colo. Ela diz que a garota está doente e precisa da graça do Senhor. Você pega a criança pelo braço e, assustada, ela começa a chorar e espernear querendo a mãe. O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Diante de ti preparas a mesa, à frente dos teus inimigos; Ele unge sua cabeça com óleo e a tua taça transborda. Você brada aos fieis que um milagre será realizado essa noite e bendito seja o Senhor, Aleluia!
O grupo de apoio da igreja se aproxima para te auxiliar a segurar a menina que agora grunhe e se debate no chão do púlpito. Você diz em voz alta que o demônio está em posse daquele corpo e que você vai expurgar o mal que acomete a pobre criança. O povo grita e o admira, mas não Isabel, pois Isabel está em casa com dor-de cabeça.
Dor-de-cabeça o caralho. Você imagina que a essas horas ela está abrindo a porta para o filho-da-puta do vizinho que olha torto pra ela sempre que a vadia põe os pés na rua. Isabel fará com ele o que não faz com você e você está vermelho de ódio enquanto os fieis se exaltam e louvam aos berros a porra do Senhor.
Com o candelabro que descansava em cima da mesa oratória você acerta a cabeça da menina-demônio à sua frente, rachando-lhe a fronte. As pessoas gritam desesperadas, o grupo de apoio leva a mão à boca, estupefato, e você diz que está tudo bem, está tudo bem, ela será salva, mas Isabel não. Não, Isabel não será salva, aquela puta ordinária, dando o cu pro vizinho enquanto você pregava a Palavra. Isabel não seria salva e você desce o candelabro de novo e de novo e de novo e bendito seja o Senhor, Aleluia!
Quando a polícia chega você ainda está batendo o candelabro no chão do púlpito onde descansava os restos do que um dia fora a cabeça da garota-demônio. Um dos policiais acerta-lhe um chute com a botina bico-de-ferro bem no meio da costela e você cai ao lado dos pedaços de crânio e miolos esbranquiçados da menina-demônio ainda batendo o candelabro e segurando a porra da Palavra.
O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Felicidade e amor lhe acompanham todos os dias da tua vida. O policial faz questão de te chutar mais algumas vezes e dizer que você vai passar o resto da porra da sua vida na porra da cadeia. Enquanto ele te põe no camburão você fala que Isabel é uma puta e está chupando o pau do seu vizinho. O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Sua morada é a morada do Senhor, por dias sem fim.
segunda-feira, 26 de abril de 2010
#1
Primeiro você mira o céu e no seu campo de visão há apenas o azul e o branco. Então você começa a rodar e rodar até o branco das nuvens e o azul do céu se mesclarem. Nesse momento você fecha os olhos. A luz do Sol transpassa as pálpebras e tudo o que você vê é um mundo vermelho-alaranjado, cor de carne. Você ainda sente tudo rodar, ainda pode ver o céu girando sob o fundo cor-de-abóbora que são suas pálpebras e diversos mundos abrem-se como um leque a sua frente.
Você deita sobre a grama ainda de olhos fechados, macia como o tapete antigo da sala no qual você rolava com seus brinquedos quando era pequeno. A leve brisa da tarde toca seu rosto, beija-o, acaricia-o. O clima está quente, mas confortável. A relva úmida lambe-lhe o braço.
Você está feliz. Radiante. É uma sensação boa estar ali. A vida é boa. Pacífica. Bela.
Você não consegue abrir seus olhos. Você tenta, mas não consegue. Leva as mãos até as pálpebras e as sente coladas sobre o rosto. Levanta. Desespera-se. Cego. O laranja torna-se negro. Não há mais Sol. O vento agora investe furiosamente contra o seu corpo, empurrando-o. Você se pergunta onde está o Sol. Você crava as unhas nas pálpebras na vã esperança de fazê-las se abrir. Você nunca se sentiu tão sozinho. Nunca se sentiu tão desorientado.
Você não sabe para onde ir. Tudo é treva, tudo é escuridão. Você sente vontade de chorar. Sente o nó na garganta afrouxando, as maçãs do rosto contraindo e as glândulas lacrimais trabalhando, mas você não tem olhos. Seus joelhos cedem, você cai de quatro e vomita. Você cai sobre o vômito. E você ri e rola sobre ele, porque é quente e cheira a banana amassada. Você lembra da sua mãe. Sua mãe com avental xadrez amassando a banana com o garfo. Com a colher azul de ursinho ela brincava de aviãozinho e você comia tudo. Você comia tudo!
Você ri e rola sobre o vômito porque você comia tudo e era um bom menino e seu pai iria trazer aquela bola verde bonita que você viu na feira domingo passado. A bola! Você iria ganhar a bola! Será que a maldita enfermeira não sabia disso? Ela te tira de sobre o vômito com um olhar de desprezo e aversão enquanto você chuta e cospe. Ah, a puta não sabia. Você sente uma picada. Você pede pra sua mãe matar o mosquito. Você odeia mosquitos.
Você começa a ficar com sono. A enfermeira te deita no tapete ao lado do avião e os bloquinhos de montar que de fato não estão ali, e nem o tapete, mas você não sabe disso ou finge que não sabe. Você fala pra ela que não quer dormir porque seu pai está chegando com a bola, mas sente suas pálpebras começarem a fechar. Ah, sim, elas estavam abertas. Você deve ter se enganado.
Tudo bem, isso acontece. Bons sonhos.
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