Está anoitecendo. Você está sentado no banco da praça e está frio. O vento afaga as folhas das árvores com seus dedos finos e invisíveis fazendo-as suspirar num chiado rítmico, quase musical. Você fecha os olhos e inspira fundo. O ar gelado entra ardendo pelas suas narinas.
Trabalho, estudos, estresse. Ao final do dia, nada que faça valer a pena o esforço. Então você usa memórias felizes de um passado distante como escapismo. Há alguns invernos atrás, viver era usufruir das novidades sem preocupações ou responsabilidades.
Viver hoje é não viver.
É trabalhar mais de oito horas por dia e sacrificar suas horas vagas para estudar as matérias dadas na faculdade. É ter que conviver com pessoas que você não suporta e ver os únicos amigos de verdade raríssimas vezes ao ano. É estar limitado a não fazer nada do que gostaria.
Viver hoje é estar morto por dentro.
Você abre os olhos. O céu já está quase completamente escuro. Você varre seus problemas da cabeça e joga-os nas costas, junto com a mochila. É hora de ir para casa. Ou para o lugar que assim você o chama.
Um gato morto na sarjeta, um mendigo bêbado cortejando uma prostituta e o cheiro rançoso das lanchonetes de esquina são as únicas coisas que ornamentam a noite. Não há estrelas no céu. Há muito a poluição as havia engolido. Você se pergunta se o mundo sempre fora assim ou os olhos veem o que querem ver. Provavelmente os dois.
Você pensa no jovem que sonhava com a maioridade, em sair de casa com 18 anos e viver sem a aporrinhação dos pais. Você pensa no jovem que sonhava em morar com os amigos e fazer da vida uma eterna festa. Você passa em frente à vitrine espelhada da loja de calçados na avenida e vê o que sobrou desse jovem garoto: um homem sem vontade, consumido pelo estresse, o tédio, e morto por dentro. Morto por dentro.
"Posso ajudar?"
Você diz ao vendedor que não. Ninguém pode ajudar. Você continua o caminho para casa. Você sabe que está morto desde o dia em que nasceu e fora predestinado a ser o homem que é. A vida é uma loteria. Não tem nada a ver com dinheiro, você pensa, mas é o que é. Ser o espermatozóide certo no óvulo certo. Estar no lugar certo na hora certa. Conhecer as pessoas certas nos momentos certos. Cada evento desses pode desencadear sentimentos diferentes, perspectivas diferentes, ideias diferentes. Pode lhe dar um motivo pelo qual continuar vivendo. Um motivo para ser feliz.
Algumas pessoas têm essa sorte, mas não você. Você não tem pelo o que viver porque sua visão de mundo tornou-se imutável. Aos seus olhos o mundo é o lixo que é e não há conserto. Você pensa que o melhor seria estar morto. O melhor seria dormir e não acordar. Mas...
Na sua casa você deita a cabeça sobre o travesseiro. Coloca o celular para despertar às 5:00. Boceja.
Não importa quantas vezes você pense nessas coisas, nunca vai chegar a uma conclusão. Você continuará vivendo em função do amanhã. Não por dar valor à vida ou por ter esperanças de que ela possa melhorar;
Mas por não ter escolha.
***
"Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro,
- Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;"
- trecho de Por Que Mentias, de Álvaro de Azevedo
Do deserto, o poento caminheiro,
- Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;"
- trecho de Por Que Mentias, de Álvaro de Azevedo
é exatamente assim... a rotina vai nos matando pouco a pouco!
ResponderExcluirNossa cara, que profundo. '-'
ResponderExcluirQue melancólico isso! :S
ResponderExcluiraheuaheuae
Não existe uma pessoa só que, quando questionada sobre o que sente saudades, não diga que sente saudades da infância, quando brincar era a única preocupação que tínhamos...
A nossa visão sobre o mundo, tambem pode mudar um pouco tudo isso... Pelo menos eu acho que acreditar um pouco na alegria das coisas, pode nos dar sim um pouco mais de ânimo pra vida. ;)
Tirando a parte trabalhadora, me vi no personagem. Muito bom, como sempre :]
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