quarta-feira, 28 de abril de 2010

#2


Você está sobre o púlpito e nas suas mãos está a Palavra. O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Em verdes pastagens lhe faz repousar; para fontes tranquilas Ele te conduz e restaura as suas forças. Você encara os fieis a sua frente e fala isso em voz alta. Bendito seja o Senhor, Aleluia!


Isabel não veio para o culto novamente. Dor-de-cabeça.

Ah, o casamento. A união espiritual entre o homem e a mulher diante o Deus-Pai. União essa que vai muito além da vulgar união carnal banalizada pela sociedade contemporânea. União carnal. Sexo. Você se pergunta há quanto tempo não se une de tal maneira com Isabel. Filhos crescidos, casa vazia, mas Isabel vive com dor-de-cabeça e isso contribui para que tal ato não seja consumado. Não faz mal. Isso não lhe faz falta. O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Ele te guia por bons caminhos por causa do Seu nome.

A igreja ressoa os murmúrios dos fieis fervorosos. Mãos voltadas aos céus, alguns pares de joelhos beijando o mármore frio dessa noite de sábado. O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Por mais que caminhe pelo Vale da Morte, nenhum mal temerá, pois Ele está contigo; Teu bastão e Teu cajado lhe deixam tranquilo.

O Senhor estava ali para purificar cada alma pecadora. Cada alma pecadora menos Isabel, porque Isabel não estava presente. Não ia ao culto havia semanas. Meses. Sempre a mesma desculpa, tanto para o culto quanto para o sexo. Você pede para o Senhor dar um jeito em Isabel. Maldita Isabel.

Mirando o teto com a Palavra – folhas amarelas de uma versão antiga, presente do seu pai – você grita que alguém será purificado e agraciado pelo Espírito Santo essa noite. Esse alguém não será Isabel, porque Isabel está com uma porra de uma dor-de-cabeça e não quer vir na porra da igreja e nem dar uma porra de uma foda com você.

Nisso, uma mulher que estava sentada na terceira fileira da nave esquerda da igreja caminha na sua direção com uma menina no colo. Ela diz que a garota está doente e precisa da graça do Senhor. Você pega a criança pelo braço e, assustada, ela começa a chorar e espernear querendo a mãe. O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Diante de ti preparas a mesa, à frente dos teus inimigos; Ele unge sua cabeça com óleo e a tua taça transborda. Você brada aos fieis que um milagre será realizado essa noite e bendito seja o Senhor, Aleluia!

O grupo de apoio da igreja se aproxima para te auxiliar a segurar a menina que agora grunhe e se debate no chão do púlpito. Você diz em voz alta que o demônio está em posse daquele corpo e que você vai expurgar o mal que acomete a pobre criança. O povo grita e o admira, mas não Isabel, pois Isabel está em casa com dor-de cabeça.

Dor-de-cabeça o caralho. Você imagina que a essas horas ela está abrindo a porta para o filho-da-puta do vizinho que olha torto pra ela sempre que a vadia põe os pés na rua. Isabel fará com ele o que não faz com você e você está vermelho de ódio enquanto os fieis se exaltam e louvam aos berros a porra do Senhor.

Com o candelabro que descansava em cima da mesa oratória você acerta a cabeça da menina-demônio à sua frente, rachando-lhe a fronte. As pessoas gritam desesperadas, o grupo de apoio leva a mão à boca, estupefato, e você diz que está tudo bem, está tudo bem, ela será salva, mas Isabel não. Não, Isabel não será salva, aquela puta ordinária, dando o cu pro vizinho enquanto você pregava a Palavra. Isabel não seria salva e você desce o candelabro de novo e de novo e de novo e bendito seja o Senhor, Aleluia!

Quando a polícia chega você ainda está batendo o candelabro no chão do púlpito onde descansava os restos do que um dia fora a cabeça da garota-demônio. Um dos policiais acerta-lhe um chute com a botina bico-de-ferro bem no meio da costela e você cai ao lado dos pedaços de crânio e miolos esbranquiçados da menina-demônio ainda batendo o candelabro e segurando a porra da Palavra.

O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Felicidade e amor lhe acompanham todos os dias da tua vida. O policial faz questão de te chutar mais algumas vezes e dizer que você vai passar o resto da porra da sua vida na porra da cadeia. Enquanto ele te põe no camburão você fala que Isabel é uma puta e está chupando o pau do seu vizinho. O Senhor é seu pastor e nada lhe faltará. Sua morada é a morada do Senhor, por dias sem fim.

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